(Continuação de "Alice")
Era garota decidida, corajosa, de pensamento forte, mas só
do peito pra dentro. Da boca pra fora nunca contestava, nunca questionava,
engolia seco tudo o que lhe era imposto. Não se permitia ousar - temia a represália.
Sofria calada, chorava em silêncio e morria aos poucos enclausurada dentro de
uma casa velha, governada por um monstro que há 5 anos desempregado, fazia da
sua vida um verdadeiro inferno.
Por muitos tempo foi assim, até que sabe lá Deus porque,
naquela tarde em especial, Alice transbordou. Tinha sido a gota d’água. Não
obstante, nada havia acontecido de diferente, o padrasto abusou dela mais uma
vez, como costumava fazer várias vezes durante a semana. Mas alguma coisa mudou
dentro de Alice ... e enquanto ele saiu para fumar, limpando as lágrimas ela
tomou uma decisão: Isso nunca mais aconteceria.
Muitas coisas poderiam ter sido feitas, e ela escolheu a
mais complicada, mas talvez a única que, de fato, a tornaria livre de todo esse
pesadelo. Sua mãe, mulher ingênua e de pouca instrução, não acreditaria em uma
palavra caso ela revelasse a verdade, então não adiantava contar. Por um
segundo Alice pensou em cometer um homicídio, mas pelo seu irmãozinho de 2
anos, não o fez (afinal, o velho asqueroso era seu pai). Suicídio era a penúltima
opção, mas ela tinha sonhos e não abriria mão deles. Decidiu, portanto, fugir levando
uma mochila de roupas, sua boneca de pano e o diário secreto.
Deixou um bilhete na mesa para a mãe dizendo que a amava.
Amarrou sua pulseira de miçangas no braço do irmão, deixando pra ele uma
recordação e saiu pela porta pra nunca mais voltar. Pegou o ônibus na cidade em
direção ao Rio de Janeiro. Vendeu balas de dia, pra matar a fome, e dormiu
debaixo das marquises à noite, pra se esconder do sereno. Já aos 16 tentou
emprego de camelô, mas perdeu seus produtos para a polícia depois de ser
espancada por venda ilegal. Virou faxineira de casa de família, mas foi
demitida logo em seguida porque se recusou a deitar com o patrão.
Alice sofreu de tudo tentando ser vencedora de sua própria
história, mas como quem cumpre uma sina amaldiçoada, dolorosa e tenaz, se
transformou em mais uma das tantas meninas que se prostituem no centro de uma
das maiores megalópoles nacionais. Cheia de sonhos e planos, nunca conseguiu
realizar sequer um deles. Ela é apenas mais uma vítima da vida e do destino. Não
é justo que tenha sido assim, ela merecia ao menos uma oportunidade de ter sido
feliz.
Não me lembrava dela, até que quando saia de casa semana
passada fui abordado por uma moça que se identificou como Alice, minha irmã.
Ela trazia um diário para que eu a conhecesse através das linhas dele, e se
emocionou quando viu que eu ainda uso a pulseira colorida de miçangas. Ao longo
daquele manuscrito eu completava as lacunas da minha vida e via nele um
espelho. A cada linha eu odiava mais o meu pai e percebia que não tinha sido o
único a sofrer nas mãos dele.
Pode parecer forte demais dizer isso assim, logo no final da
história, mas a minha infância com meu pai foi exatamente igual à de Alice. A
diferença é que eu não tive coragem pra fugir.
FIM
Matheus Fonseca Pinheiro
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